Editorial: Tortura, nunca mais?

Foto: Monumento Tortura Nunca Mais, localizado na cidade do Recife, Pernambuco. Concebido pelo arquiteto Demetrio Albuquerque e construído em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos durante o regime militar brasileiro.

Toda nossa tortura era feita nós nuas [sic], as mulheres nuas, os homens também ficavam nus, com vários homens dentro da sala, levando choques pelo corpo todo, inclusive na vagina, no ânus, nos mamilos, na boca, nos ouvidos. E meus filhos me viram dessa forma. Eu, urinada, com fezes, com, enfim, o meu filho chegou para mim e disse, mãe, por que é que você ficou azul e o pai ficou verde?” [1].

Esse é um trecho do depoimento de Maria Amélia de Almeida Teles para a Comissão da Verdade desvelando os métodos utilizados pela ditadura militar para tratar quem considerava inimigo. Após mais de trinta anos da redemocratização, as vítimas parecem ser outras, mas os métodos ainda são os mesmos. Para aqueles que convivem com o cotidiano da justiça criminal, é um desafio não naturalizar relatos como os de Amelinha, sistematicamente descredibilizados por quem deveria apurar os fatos.

Diante da violência de estado exposta, seus próprios representantes calam, como se não fosse possível investigar qualquer crime sem cometer outros crimes, sem violar direitos, inclusive o da integridade física, tal qual nos tempos medievais. Assim, a acusação se forma frágil através de prova sabidamente ilícita, a defesa tem poucos instrumentos para exercer seu papel de investigação defensiva e o julgador fecha os olhos convalidando todo esse (não) processo.

Os relatos de tortura policial de jovens negros e periféricos já não indignam quase ninguém, sufocando as vítimas e seus corpos docilizados [2], que seguem o comportamento geral, restando-lhes baixar a cabeça e dizer muito obrigado [3]. O sistema de controle da atividade policial, seja o interno, atribuído às corregedorias, seja o externo, de competência do Ministério Público, parecem apenas legitimar o que todos sabem, mas que só reconhecem, constrangidos, diante de uma prova irrefragável. A militarização da polícia ostensiva e a falta de estrutura da polícia investigativa alçou a tortura e a coação ao meio mais eficaz para chegar aos fins desejados.

O cenário se deteriora em tempos de pandemia, em que as alternativas à audiência de custódia escolhem o distanciamento social para uns. Os agentes responsáveis pelas prisões seguem nas ruas, enquanto a letra fria dos autos de prisão em flagrante percorre os endereços eletrônicos do Ministério Público, da defesa e do Judiciário, evidenciando que o poder punitivo não cessa, mas a garantia de direitos, sim.

Suspensas as audiências de custódia, a alternativa precarizada de juntada de fotografias e laudos traumatológicos – que teoricamente demonstraria a inexistência de maus tratos e práticas de tortura – é completamente ignorada por grande parte dos juízos brasileiros.

A letalidade da polícia tem como efeito colateral o dolo eventual do estado: a morte de milhares de inocentes em meio a uma guerra construída. Entre 2017 e 2019, policiais mataram pelo menos 2.215 crianças e adolescentes no Brasil [4]. Apenas o estado do Rio de Janeiro registrou, entre os anos 2018 e 2020, em média, três relatos de tortura de presos por dia [5]. Vidas que se vão sem ninguém perceber, sem sabermos os nomes, as histórias, sem nos indignarmos ou pararmos o país.

Jurandy de Santana, pai de Geovane Mascarenhas de Santana, uma dessas tantas vítimas sem rosto, decapitado vivo aos 22 anos após abordagem da Polícia Militar da Bahia, ainda espera, depois de 5 anos, por uma resposta que nunca chega: “eu lutei por um direito que tenho, eu não queria levar essa dor que muitas mães têm, muitos pais têm aí” [6].

Mães como Miriam Cristina de Jesus, Rute Silva Santos, Ana Lucia Conceição da Silva e Lucy Moura Santos continuam na busca incansável de justiça por seus filhos, relegados a estatísticas que escondem vidas, afetos e sentimentos nunca enterrados entre a angústia e a dor silenciosa. 

A política de segurança pública segue executada pelo estado que pactua a morte de muitos em nome da vida de poucos. A verdade é que a tortura sempre foi instrumento de controle social, desde a escravidão até os dias de hoje, desde as senzalas até os porões das delegacias de polícia. Porém, para a tortura de corpos negros, o Brasil nunca fez o devido acerto de contas com sua própria história, escolhendo esconder suas feridas sem cicatrizá-las. Até quando?

REFERÊNCIAS

[1] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes 2014. 

[3] GONZAGUINHA. Comportamento Geral. Luiz Gonzaga Jr. (álbum). Gravadora: EMI-Odeon, 1973.

[4] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

[5] Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Levantamento dos casos de tortura, 2019. Disponível em: < http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/4688e3741bd14a60a27c08cf15cdaa43.pdf >. Acesso em 21 de dez. de 2020.

[6] ATTAL, Bernard. Sem descanso (documentário). Salvador: Santa Luzia Filmes, 2019.

Bruno Moura
+ posts

Defensor público do estado da Bahia, Especializado em Defensoria Publica pela UNIFACS.

Gabriela Andrade
Gabriela Andrade
+ posts

Defensora Pública do Estado de Pernambuco. Coordenadora-adjunta do Departamento de Publicações do IBADPP. Pós-graduada em Direito (UFBA/EMAB) e graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).