Editorial: Política criminal e eleições: reflexões a partir das campanhas à Prefeitura de Salvador

As eleições de 2018 viram a questão criminal ocupar o campo discursivo das candidaturas de forma especialmente destacada, reverberando o que já vinha ocorrendo em diversos espaços de debate público. Temas como segurança pública e corrupção se sobrepuseram a outras pautas que tradicionalmente ocupavam centralidade nas eleições. Essas outras pautas foram, ou completamente silenciadas pelas campanhas, ou tratadas sob um enfoque que não saía da órbita do criminal, sendo a punição apresentada como grande resposta para a resolução de quase qualquer problema social[1].

Tal cenário intensifica um processo já verificado desde a década de 1980 no Brasil, na  saída da ditadura civil-militar, período em que a violência urbana passa a ser considerado um efetivo “problema nacional” (PASTANA, 2009), esmaecendo-se a crítica à violência de estado mesmo por movimentos de direitos humanos (COIMBRA, 2010). A manutenção das bases autoritárias contra os corpos negros erguidas nas raízes da escravidão a fim de garantir a dominação fundante do Estado brasileiro (MOURA, 2018) atravessa a ausência de registro do sofrimento negro, como nos diz Ana Flauzina (2015), no âmbito de um contrato racial que aproxima diversos espectros políticos[2]. Em verdade, a ascensão de uma extrema direita agora “desenvergonhada”, em 2018, atendeu a uma demanda de repactuação para a continuidade das hierarquias sociorraciais, que constituem o capitalismo e a própria colonialidade do poder (CESÁIRE, 1978; QUIJANO, 2005).

Em 2018, a candidatura de extrema-direita que ocupou os primeiros lugares de intenções de voto durante todo o pleito, tornou ainda mais central a discussão sobre questão criminal e segurança pública. Mas nas eleições de 2016 algo já chamava a atenção. Pleitos municipais de grandes capitais consolidavam a entrada de um tema antes deixado às eleições para o executivo estadual e federal (inclusive por ser deles a competência constitucional para tratar de tais temas). A Lei nº 13.022/2014 – que dispôs sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais[3] – estimulou esse cenário, sendo ponto importante de debate o papel a ser atribuído às guardas municipais na produção do espaço urbano e se lhe seria atribuído armamento ou não. Em Salvador, nos últimos anos, assistimos à transição de uma simples guarda de bens públicos em uma força de ordem de aparato bélico grosseiro, que protagonizou ações truculentas de repressão a movimentos sociais e extermínio de pessoas em situação de rua[4].

Já em 2020, novamente a questão criminal parece ocupar lugar importante nas eleições municipais. A cidade de Salvador apresenta algumas características específicas nesse cenário: nas eleições de 2018, o atual presidente perdeu em todas as zonas eleitorais e, atualmente, a cidade ocupa o primeiro lugar entre as capitais na rejeição ao seu governo. Esse contexto fez com que em Salvador, diferente de em outras localidades, as eleições municipais se constituíssem por um debate, ao menos plano discursivo, que manteve alguma linguagem garantidora – ainda que dando destaque a questão criminal –, o que torna a discussão sobre segurança pública ainda mais instigante e eivada de potencial analítico.

Destaque-se ainda que, se por um lado a alta rejeição do bolsonarismo pelos seus eleitores vai exigir dos candidatos uma mediação em seus discursos, por outro, o candidato da situação Bruno Reis (eleito em 1º turno) foi oficialmente apoiado pelo PSL[5] e a principal candidatura da esquerda, Major Denice, é integrante da polícia militar[6][7]. Isso sem esquecer do emblemático candidato Pastor Sargento Isidório, que já traz em seu nome as credenciais que ilustram o cenário político nacional –  mesmo que ele não provenha dos setores fundamentalistas e militares que alavancaram o retrocesso recente – e de Cézar Leite, candidato declaradamente bolsonarista que, contrariando as pesquisas de intenção de voto, acabou em quarto lugar nas eleições municipais de Salvador com mais de 56.000 votos.

A partir desse cenário, buscamos ler as propostas de governos dos/as cinco candidatos/as mais bem colocados/as no pleito municipal soteropolitano[8], para tentar compreender, em uma primeira análise exploratória, como diferentes aspectos da questão criminal foram abordados por eles/as[9]. A análise exploratória dos planos de governo mostra como a eleição municipal tem levado a proposição de programas[10] e até secretarias municipais de segurança pública, que refletem a centralidade assumida pela questão criminal como grande “questão nacional”.

Entretanto, se podemos apontar algo interessante é que, apesar de estar colonizada pela discussão da segurança pública e de repressão penal[11], a eleição municipal soteropolitana, ao menos discursivamente, ainda pode apresentar brechas de uma discussão que saia de um conceito vazio e se vincule a uma promoção concreta de direitos, na esteira de uma “segurança dos direitos” (BATISTA, 2013). Se questões como violência de gênero e drogas aparecem em quase todas as propostas de governo analisadas[12], as formas de enfrentamento a elas variam, sendo apresentadas, em alguns casos, alternativas que não focam na chave da punição/repressão.

Assim, encontramos propostas que, no caso da violência de gênero, propõem – ao menos no plano discursivo – incremento dos centros de referências e das redes de proteção a mulher (como é o caso de Bruno Reis e Major Denice) ou Olívia, que ao discutir a necessidade de se resguardar a segurança física das mulheres, não enfoca na polícia nem na repressão, mas em propostas de acolhimento às vítimas, como a descentralização desses centros como medida de atendimento e prevenção, afinal  essa violência, para a candidatura, “deve ser compreendida como uma questão de saúde pública pela magnitude das ocorrências e o enorme impacto físico e psicológico na vida das mulheres” (p. 44).

Em relação à pauta sobre drogas, não se pode perder de vista a força de candidaturas que demandam punição de forma menos “maquiada”, e que poderiam acabar camufladas pela expressiva votação do prefeito eleito. Nesse sentido, o Pastor Sargento Isidório – que obteve mais de 64 mil votos –, é o representante da simbiose “tratamento-punição” a partir da “guerra às drogas”, no momento chave em que está é relegitimada pelo retrocesso no campo da saúde pública em prol de medidas de neutralização. Cézar Leite, por sua vez (com uma votação expressiva de mais de 56 mil votos) afirma de maneira expressa que fomentará ações de “combate às cracolândias, visando a internação compulsória dos usuários de crack para que estes se recuperem do vício, com o estabelecimento de parcerias com clínicas de reabilitação e instituições religiosas”.

Mas a Lei n.13.840/2019, que modificou a Lei de Drogas permitindo a internação involuntária e fortalecendo comunidades terapêuticas, também aparece de forma acrítica no plano de governo de Bruno Reis. O candidato afirma que a sua administração “atualizará a atuação da Prefeitura em relação às drogas, com base na nova Lei Federal n. 13. 840, de 2019” (p.14) sem detalhar muito o que isso significará. Tal questão acende um sinal de alerta, sendo necessário que refinemos a análise sobre propostas de aparente acolhimento ao uso abusivo de drogas – também presente em Major Denice – que não abdicam do terror de estado e que ignoram o paradigma da diferenciação usuário/comerciante.

A tentativa de afastamento, em geral, do discurso bolsonarista, com exceção de Cezar Leite (cuja votação inesperada pode trazer novos elementos para o cenário soteropolitano), mostrou como, em Salvador, tal perspectiva é capturada de forma matizada, até mesmo por candidaturas que se alinham no punitivismo.  Este é o caso das candidaturas de Bruno Reis e Major Denice, que foram sustentadas por projetos políticos de fundo – respectivamente, Rui Costa e ACM Neto –, pautados em posturas e práticas conservadoras de mobilização da repressão estatal.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Ana Luisa L. de A.; MATOS, Lucas Vianna. A criminalização da desordem: uma aproximação crítica inicial em torno da guarda municipal do Rio de Janeiro. In: I Congresso de Criminologia: crítica(s), minimalismo(s) e abolicionismo(s), 2015. Anais do I Congresso de Criminologia: crítica(s), minimalismo(s) e abolicionismo(s). ano 1. João Pessoa: EDIPUCRS,2015. Disponível em: < https://editora.pucrs.br/anais/congresso-de-criminologia/assets/2015/52.pdf> Acesso em 14.11.2020.

BATISTA, Nilo. Criminologia sem segurança pública. Revista Derecho Penal e Criminologia, v. 10, p. 86 -90, 2013.

BATISTA, Vera Malaguti. Atendendo na guerra. In: LOPES, Lucília Elias; BATISTA, Vera Malaguti. Atendendo na guerra: dilemas médicos e jurídicos sobre o crack. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (doutorado), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, 2005.

CESÁIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.

COIMBRA, Cecília. Entrevista concedida a Vera Malaguti Batista. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 15, n. 17/18, Rio de Janeiro, 2010.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. A medida da dor. In: FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (Orgs.). Encrespando Anais do I Seminário Internacional Refletindo a Década Internacional dos Afrodescendentes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016.

MATOS, Lucas Vianna. Conflito e Controle na Cidade: Poder Punitivo e Produção do Espaço no Centro de Salvador. Dissertação (mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2017.

MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

PASTANA, Débora. Justiça penal autoritária e consolidação do estado punitivo no Brasil. In: Revista Sociologia Política. Curitiba, v. 17, n.32, fev. 2009, p.121-138.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.


Referências

[1] Foi com essa percepção da centralidade do criminal no debate sobre política social, que no ano de 2018, junto aos integrantes do Grupo Clandestino, nos debruçamos sobre os discursos de 9 campanhas presidenciais, produzindo reflexões a partir de eixos de política criminal, sendo um deles violência urbana e segurança pública. A escalada do bolsonarismo transformou a cena eleitoral e pautou a forma como se posicionavam as demais candidaturas. O livro, originado de reflexões sobre esta pesquisa, encontra-se no prelo da Editora Revan.

[2] Sueli Carneiro (2005) se destacou por mobilizar, no Brasil, a noção de contrato racial para desenvolver as análises presentes em sua tese de doutorado.

[3] “A legislação, a despeito da ausência de autorização constitucional, amplia significativamente o rol de competência das guardas, inserindo de forma clara a instituição no campo da segurança pública” (BARRETO; MATOS, 2015, p.09)

[4] Como se pode ver em: https://videos.bol.uol.com.br/video/guarda-municipal-agride-moradores-do-centro-historico-de-salvador-04020E183662CCB15326, https://www.redebrasilatual.com.br/educacao/2018/08/guarda-municipal-agride-professores-que-protestavam-em-salvador/ e https://www.bahianoticias.com.br/noticia/188979-guarda-municipal-mata-morador-de-rua-em-frente-ao-elevador-lacerda.html. Acesso em 16.11.2020.

[5] Disponível em: http://atarde.uol.com.br/politica/eleicoes/noticias/2138447-psl-confirma-apoio-a-candidatura-de-bruno-reis-em-salvador. Acesso em: 14.11.2020.

[6] Destaque-se que o Estado da Bahia é o estado brasileiro com o maior número de homicídios desde 2015 e o terceiro com maior número de homicídios praticados por agentes policiais (FBSP, 2019; IPEA, 2020).

[7] Tal candidatura ainda esteve sustentada publicamente pelo governador Rui Costa, que, além de uma política de segurança pública bastante conservadora, manifesta em diversos discursos algum nível de alinhamento à perspectiva do presidente da República, como se pode observar, por exemplo, em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/progressao-de-pena-e-estimulo-ao-homicidio-diz-governador-da-bahia.shtml, https://bahia.ba/politica/rui-quer-endurecer-punicao-para-nao-dar-refresco-a-criminosos/ e https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/e-como-um-artilheiro-em-frente-ao-gol-diz-rui-costa-sobre-acao-da-pm-com-doze-mortos-no-cabula/. Acesso em 14.11.2020.

[8] Bruno Reis, Major Denice, Pastor Sargento Isidóro, Cézar Leite e Olívia.

[9] Sabemos que os planos oficiais de governo não dão conta da complexidade dos discursos eleitorais, não tendo sido possível analisar, por exemplo, postagens em redes sociais, vídeos de campanha veiculados na televisão e debates eleitorais.

[10] Em Bruno Reis, por exemplo, temos a proposta de uma “Política Municipal para as Drogas”, por exemplo. Além disso, tópicos específicos tratando sobre “segurança pública”, aparecem nas propostas de Major Denice, Cézar Leite (este com declarado viés de um punitivismo extremado) e Olívia (única a apresentar críticas mais contundentes à violência estatal). Destaque-se também que, embora não fale explicitamente em segurança pública (ou sequer mencione a guarda municipal), Bruno Reis integrou a gestão do “choque de ordem” de ACM Neto. A gestão do herdeiro do carlismo instituiu a emblemática “Secretaria de Ordem Pública” no município, tendo sido a guarda civil municipal instituição chave na “criminalização das desordens” urbanas em Salvador (MATOS, 2017).

[11] Cézar Leite é o candidato que apresenta mais propostas dentro da chave da repressão, afirmando, entre outras coisas, a necessidade de tornar Salvador uma “cidade referência no combate ao crime e na garantia da lei e da ordem” (p.40) e propondo a criação de uma secretaria municipal de ordem pública. Em Isidório, por sua vez, vale destacar a preocupação com a gestão das “pequenas ilegalidade” quando propõe a criação de um “núcleo permanente de combate à pichação e à vandalização dos espaços urbanos, integrando órgãos ambientais, polícias, poder judiciário, Ministério Público, Guarda Municipal e sociedade civil, para coordenar ações de educação, repressão, penalização e recuperação de áreas” (p.12)”. 

[12] A exceção é Olívia, que não aborda a questão das drogas em sua proposta de governo. De forma destacadamente diversa dos demais candidatos, inicia seu tópico sobre segurança pública apontando que “São também centrais para a cidadania as políticas na área de segurança pública e a noção de um Estado que tem o monopólio da violência e a exerce contra os mais pobres, o povo preto e jovem” (p.13).

Ana Luisa Barreto
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Doutoranda em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduada em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integra o Grupo Clandestino de estudos em Controle, Cidade e Prisões e é associada ao Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Foi estudante extensionista e advogada-monitora do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA.

Vinícius de Assis Romão
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Doutorando e mestre em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em ciências criminais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Bacharel em direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Grupo Clandestino de estudos em Controle, Cidade e Prisões. Associado ao Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Foi estudante extensionista e advogado-monitor do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA. Atuou como assessor jurídico e advogado-monitor do Patronato de Presos e Egressos da Bahia.