
Editorial: Os Mil Dias
Crédito da imagem: Bárbara Dias / Fotoguerrilha
Era uma sexta-feira de brincadeiras de criança na porta de casa, quando Lídia da Silva Moreira Santos, voltando do trabalho, desceu do ônibus para mergulhar na grande noite que é o terror de estado contra corpos negros em solo brasileiro. Em vez de travessuras e risadas infantis, ela conta o que viu:
Vocês já imaginaram a cena? Eu chegar 20h20 do trabalho, saltar do ônibus, ver a polícia parada atirando para dentro da favela, chego na casa da minha mãe e minha sobrinha tá com o cérebro no chão. Ando mais dois metros, vejo minha neta com um tiro no coração dentro do quintal da minha mãe, isso é certo?[1]
As primas Emily, 4 anos, e Rebeca, 7 anos, se tornaram a décima primeira e a décima segunda crianças a serem mortas por tiros de arma de fogo só no estado do Rio de Janeiro. Entre protestos imediatos de familiares das vítimas e seus vizinhos e outras ações políticas visando interpelar o Estado genocida – seja por ação, seja por omissão –, os alvos da violência estrutural antinegra não têm chance de pensar em imobilismo.
A primeira ação política de homens e mulheres negros no Brasil é, assim, sobreviver. Às mulheres, muitas vezes, cabe ainda zelar não apenas pelos seus próprios corpos, mas também os de seus companheiros, irmãos, filhos e filhas, netos e netas. “Mulheres querem pão, não voto”, teriam dito algumas mulheres negras da classe trabalhadora no século XIX quando interpeladas pelas sufragistas – em geral, mulheres brancas -, de acordo com Angela Davis[2], por não se sentirem representadas pelas estratégias de luta que “se baseavam conceitualmente na condição específica das mulheres brancas das classes privilegiadas”. Entretanto, a autora aponta que trabalhadoras brancas e afro-estadunidenses reformularam progressivamente os termos das suas lutas:
entendendo o voto não como um fim em si mesmo – não como uma panaceia que curaria todos os males relacionados à discriminação baseada no gênero –, mas sim como uma arma importante para a continuidade da luta por salários mais altos, por melhores condições de trabalho e pelo fim do risco onipresente de linchamentos.
Os movimentos associativos de mulheres trabalhadoras negras perceberam, assim, há muito tempo que ocupar o espaço da política institucional não seria um ato com um fim em si mesmo, mas que a política seria um espaço de disputa para se travar diversas outras lutas. Marielle Franco viveu para adultecer em uma comunidade pobre e preta. E foi além. Saltou as armadilhas sexistas para viver a cidade fora de papeis limitadores, educou a filha que tivera no fim da adolescência e driblou o epistemicídio ao acessar a universidade, denunciando o controle policial da vida negra e periférica[3], antes de se tornar a quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro.
Mas na noite de 14 de março de 2018, Marielle Franco e Anderson Gomes, motorista do seu mandato, foram brutalmente assassinados. Uma campanha nacional no dia 08 de dezembro de 2020 marcou os 1000 dias desde essa data, sem que tenham sido dadas todas as respostas para as perguntas que circundam suas mortes. A mobilização em reação a uma das maiores tragédias políticas recentes desse país, com a interdição física de uma vereadora eleita, produziu eco internacional, não só pela comunidade brasileira, mas por movimentos, instituições e parlamentos estrangeiros, que nestes dois anos e nove meses realizaram atos e batizaram ruas e jardins com o nome de Marielle[4].
Do luto floresceram candidaturas e no mesmo ano de 2018 foram eleitas as deputadas federais Talíria Petrone (PSOL-RJ) e Áurea Carolina (PSOL-MG) e as deputadas estaduais Renata Souza (PSOL-RJ), Mônica Francisco (PSOL-RJ) e Dani Monteiro (PSOL -RJ). E em 2020, importantes candidaturas de mulheres negras foram eleitas em diversos municípios do país, em uma eleição histórica por ser a primeira a implementar a ação afirmativa de reserva de candidaturas negras entre os partidos, em razão da provocação da Deputada Benedita da Silva (PT-RJ).
Todavia, o marco simbólico dos mil dias vem junto a uma concreta exposição à morte de mulheres negras que ousaram, como diz Vilma Reis, mudar a estética da política. A deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) sofre ameaças desde 2018 e com o agravamento destas, durante a pandemia, precisou, em pleno puerpério, deixar o Estado em que vive com sua filha Moana. O contexto de radicalização da luta antirracista, frente à dura realidade de genocídio dos tiros ao vírus[5], contribuiu para eleições impactantes de mulheres negras, mas também para uma resposta imediata de setores reacionários da branquitude. Ana Carolina Dartora, primeira vereadora negra eleita em Curitiba (PT-PR), Ana Lucia Martins, primeira vereadora negra de Joinville (PT-SC), e Benny Briolli, primeira mulher trans eleita a vereadora em Niterói (PSOL-RJ), são algumas mulheres que vem enfrentando ameaças de morte desde o fim da apuração das urnas.
Mas não nos deixemos enganar: as constantes ameaças sofridas por essas mulheres antes mesmo da tomada de posse refletem não suas vulnerabilidades, mas as potências dos seus mandatos. Nos limites inegáveis da democracia representativa no capitalismo, que opera de modo a tentar impedir mudanças estruturais, essas mulheres “fora de lugar” – e aqui também se inclui, certamente, Duda Salabert, mulher trans e vereadora mais votada de Belo Horizonte – incomodam pela potência que representam.
Juliana Borges[6], dialogando com o pensamento de Patricia Hill Collins, Djamila Ribeiro e bell hooks, sobre o pensamento feminista negro, aponta que este “traz uma crítica global e sistêmica do conjunto das opressões em jogo hoje e, ao interseccioná-las, jamais prescinde da crítica a dominação classista, racista e machista”, permitindo pensar sobre “um novo marco civilizatório” e saídas alternativas ao aprofundamento do neoliberalismo. As mulheres negras que, sobrevivendo ao genocídio, adultecem e entram na disputa da política institucional incomodam simplesmente por existirem e ocuparem tal lugar[7].
Grande
parte da sociedade brasileira, beneficiária ou indiferente à cisão de
humanidade que submete a zona do não-ser à morte e aniquilamento não se importa
de contar quantas mais possam morrer “até essa guerra acabar”. Enquanto
juristas que vivem nesse tempo histórico de barbárie, acreditamos que qualquer
superação das desigualdades que se escancaram em nossas reflexões e práticas
precisa encarar a persistente barreira preliminar da desumanização, que não tem
escrúpulos na busca de produzir silenciamentos. A luta é constante para um
amanhecer sem a divisão entre corpos mortos e sobreviventes.
Referências
[1] Disponível em https://claudia.abril.com.br/noticias/avo-rebeca-primas-mortas-rj/. Acesso em 12.12.2020.
[2] Davis, Angela. Mulheres, Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2016.
[3] A sua dissertação de mestrado foi publicada com o título “UPP: a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro” pela N-1 edições.
[4] Como pode se ver em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/07/26/lisboa-tera-rua-com-nome-de-marielle-franco.ghtml, https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/09/21/jardim-em-homenagem-a-marielle-franco-e-inaugurado-em-paris.ghtml e https://www.brasildefato.com.br/2019/03/14/marielle-franco-e-homenageada-em-atos-pelo-mundo/. Acesso em 12.12.2020
[5] Como na canção “Por um triz” de Gilberto Gil, lançada em 1984, que tem como trecho “Mal escapo à fome / Mal escapo aos tiros / Mal escapo aos homens / Mal escapo ao vírus”.
[6] Borges, Juliana. A urgência do pensamento feminista negro para a democracia. Portal Geledés, 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/urgencia-pensamento-feminista-negro-para-democracia/. Acesso em 13.12.2020.
[7] O caso da primeira prefeita mulher eleita em Bauru (SP), Suellen Rosim (Patriota – SP), evidencia, como a reação antinegra está enraizada de um ódio colonial de matriz escravista, uma vez que se trata de uma candidata que defende um discurso conservador.