Editorial: O futuro não demora

O mês de outubro sempre chega com ares de infância. Entre anúncios e propagandas, assobiamos peteca, bola de gude, o criançamento das palavras e das coisas inventadas, aquelas que não têm nome, como dizia Manoel de Barros. Olhamos para os nossos, satisfazemos seus desejos e festejamos uma infância ideal. Longe das cercas embandeiradas que separam quintais [2] sobrevive uma infância real, distante das manchetes, mas que resiste, sonha e anseia por seu lugar no mundo. A criança do Brejo da Cruz cruza os céus do Brasil, uns vendem fumo e outros viram Jesus [3].

Enquanto meninos e meninas privilegiadas gozam de uma infância plena, milhares de adolescentes sujeitos à justiça juvenil adormecem em unidades de internação e, quando não morrem vítimas da violência [4], outros tantos são obrigados a assumir responsabilidades de uma vida adulta na troca da escola por trabalho e na lida do enfrentamento ao perigo sem proteção.

Os novos capitães da areia [5], como os retratados por Jorge Amado no final dos anos trinta, perdem diariamente o direito a uma infância, distantemente do que anuncia de forma falaciosa a nossa Constituição Federal. A negligência estatal, a vulnerabilidade dos núcleos familiares e a omissão da sociedade — que só os recorda para suscitar a redução da maioridade penal — desaguam na crueza da falta de perspectivas e oportunidades.

Após trinta anos da entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a privação de liberdade ainda é defendida como melhor interesse, desvelando o paternalismo elitista de um sistema de  justiça pragmático. Como ressalta Emílio Garcia Mendez, “a história é muito clara ao mostrar as piores atrocidades contra a infância cometidas muito mais em nome do amor e da proteção do que no nome explícito da própria repressão” [6].

Se o ECA ainda parece insuficiente à parte dos juízos brasileiros para que sua efetivação seja garantida, a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) precisa diariamente ser lembrada por esta autora e este autor em processos infracionais ou de execução de medida socioeducativa, pois solenemente ignorada em decisões judiciais, que repetem sensos comuns e negam direitos e garantias ali expressamente previstos sob o argumento insincero de proteção.

A postura paternalista de um sistema de justiça que nunca superou o paradigma tutelar é patente. Fala-se de tudo em audiências de apuração de ato infracional: faltou palmada. Faltou limite. Mãe, lá vai ser melhor para ele. Lá ele aprende algo. Lá ele faz um curso. Eu sei melhor do que a senhora. Já disse para a senhora se mudar desse bairro. A senhora não se mudou ainda? [7]

Algumas mães e pais, absortos e irrogados, até se convencem. A fim de pensar “as funções reais e não apenas quais as funções declaradas da segregação física de adolescentes em unidades de internação” [8], questiona-se: quem utiliza tal fabulação protetiva assim o decide por que nunca visitou uma unidade de internação ou, não por ignorância, mas por subjetivamente crer que estes adolescentes e não aqueles, devem ser punidos e seus corpos estrategicamente controlados através da privação de suas liberdades?

A institucionalização, seja em unidades de acolhimento ou de internação, desponta como a solução imediata para o problema. Nada de humano é reconhecido nessas meninas e meninos, vistos como infelizes ou delinquentes, mas jamais como sujeitos de qualquer direito. Afinal, ”reconhecer que o sistema de justiça juvenil é, de fato, punitivo (penal, e não socioeducativo) não significa que é por este caminho que se busca enveredar” [9].

Há, inclusive, pesquisas no sentido de que a utilização de lógicas do direito penal adulto ao juvenil a fim de protegê-los pode vir a ceder espaço a uma ideologia retributiva, dadas as tendências de encarceramento da justiça criminal [10]. No mundo permeado de opressões que se entrelaçam, como nos ensina a interseccionalidade [11], a infância e a juventude acrescentam sua condição subalterna diante do contexto adultocêntrico que busca domesticar corpos sem escutar o que eles tem a dizer. Sem espaços para externar o que pensam e sentem, apenas devem obediência à palavra de ordem.

Não por acaso a institucionalização é pautada como solução: sob a rigidez e a disciplina militares se aprende quieto ou coitado, por bem ou por mal. Àqueles que desconhecem o que é presente de aniversário, natal ou dia das crianças, resta o fogo cruzado queimando nas esquinas [12] inóspitas das grandes cidades. O paradigma civilizatório está posto: formar nossas próximas gerações ora em escolas de qualidade, assegurando-lhe direitos, ora do outro lado do muro, privando-as de liberdade, intervindo na consequência e não na causa.

Assim, a seletividade precoce escolhe infâncias, lacera desenvolvimentos, mutila de futuro a juventude do nosso país. A isso, lembremos trecho da poeta Louise Gluck: ”Olhamos para o mundo uma vez, na infância. O resto é memória”.

REFERÊNCIAS

[1] BaianaSystem. O futuro não demora (álbum). Gravadora: Máquina de louco, 2019.

[2] SEIXAS, Raul. Ouro de tolo. Krig-ha, Bandolo! (álbum), Gravadora Philips Records, 1973.

[3] BUARQUE, Chico. Brejo da Cruz. Chico Buarque (álbum), Gravadora Universal Music Group, 1984.

[4] Atlas da Violência 2020. IPEIA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília, 2020. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/>.

[5] AMADO, Jorge. Capitães da Areia. 92a edição. Rio de Janeiro: Editora Record,1988.

[6] MENDEZ, Emílio Garcia. Infância, lei e democracia: uma questão de justiça. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, 2013 (8): p. 1-22.

[7] Todas as expressões foram verbalizadas por juízes em audiências infracionais realizadas por esta autora e este autor.

[8] CORREIA, Liana Lisboa. Foucault, panoptismo e direito infracional. Boletim Trincheira Democrática. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Ano 3 – n. 8, abril/2020, p. 18-19.

[9] MACHADO, Érica Babini. Em resposta: para quê Direito Penal Juvenil?. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/11/24/em-resposta-para-que-direito-penal-juvenil/>. Acesso em 16 de out. de 2020.

[10] SOUZA, Flora Sartorelli Venâncio. Entre leis, práticas e discursos: justiça juvenil e recrudescimento penal. São Paulo: IBCCRIM, 2019.

[11] AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Feminismos Plurais / Coordenação Djamila Ribeiro.

[12] BaianaSystem, Manu Chao. Sulamericano. O futuro não demora (álbum). Gravadora: Máquina de louco, 2019.

Bruno Moura
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Defensor público do estado da Bahia, Especializado em Defensoria Publica pela UNIFACS.

Gabriela Andrade
Gabriela Andrade
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Defensora Pública do Estado de Pernambuco. Coordenadora-adjunta do Departamento de Publicações do IBADPP. Pós-graduada em Direito (UFBA/EMAB) e graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).