Editorial: Existirá sistema penal antirracista? Notas sobre matadouros e abate humanitário

Conforme Instrução Normativa nº 3, de 17 de Janeiro de 2000, do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, abate humanitário “é o conjunto de diretrizes técnicas e científicas que garantam o bem-estar dos animais desde a recepção até a operação de sangria” (BRASIL, 2000). Pesquisadores do campo da medicina veterinária definem que para seguir esse tipo de abate de animais, sofrimentos desnecessários devem ser evitados e as condições humanitárias devem prevalecer em todos os momentos anteriores ao abate, visando promover a garantia da qualidade do produto final (carne) e também o bem-estar dos animais (ZAPPA; TRECENTI, 2013).

Veja, será que interessa, verdadeiramente, se o animal sofrerá ou não enquanto lhe matam?  Parece-nos que essa técnica diz muito mais sobre a qualidade do produto que o ser humano quer consumir do que sua genuína preocupação com os animais. Afinal, “a qualidade da carne é caracterizada por suas propriedades físico-químicas” (ibidem) que são determinadas por fatores como, por exemplo, o abate. Se de fato a vida do animal fosse relevante para além do agronegócio e do paladar egoísta do carnívoro, ele não seria morto para consumo e ponto.

Mas calma! Você não está na Revista Globo Rural nem no Instagram da Luisa Mell… Vamos dar nomes aos bois já!

De antemão, vale dizer ao leitor que se não nos parece haver coerência quando da utilização do termo “humanitário” para se referir ao abate de animais, tampouco há coerência quando utilizamos o mesmo termo para nos referirmos ao sistema de justiça criminal, considerando que o seu alvo principal é composto por indivíduos cujo status de humano não é conferido para além de tratados, convenções e demais papéis escritos e assinados por homens brancos, esses sim considerados parâmetro de humanidade. De seres inferiores e sem alma do século XVI, rapidamente classificados como mercadoria-coisa e, depois de três séculos de escravização, fez-se o lixo (GONZALES, 1984; TRABUCO, 2020).

Ainda, sustenta-se o não cabimento da expressão referida, porque os mecanismos inerentes a esse sistema são, naturalmente, desumanizadores, pois são a continuidade do rol de práticas escravocratas; portanto, a destruição da dignidade humana é crucial nesse processo (HOOKS, 2019). O cárcere e todo sistema que este integra, são elementos fundamentais na manutenção das relações desiguais de poder que caracterizam o modelo capitalista de mundo (o mesmo do agronegócio). Fundamental para essa estrutura é a dominação de corpos, sobretudo negros, e para cumprir tal função nada mais eficaz do que o controle social via esfera penal.

Ocorre que há muito mais que um controle “atrás das grades” – o  que o sistema penal brasileiro opera é um verdadeiro genocídio da população negra (leia-se abate), lembrando que esse conceito não se limita à morte física, mas está relacionado também ao extermínio da identidade social, das vivências e das afetividades (NASCIMENTO, 2016). Desde antes de 1888 os discursos penais direcionam e naturalizam a violação de corpos negros, eis que sua missão é exatamente essa. Assim, nos soa um tanto quanto ilógico pensar em um sistema “antirracista”, pois o racismo é a engrenagem principal desse maquinário.

Ângela Davis (2019) ensina que clamar por reformas no sistema contribui para o fortalecimento do discurso de que o encarceramento é a única solução possível, logo, para a manutenção dessa lógica punitivista. Embora seja possível argumentar que reformas podem constituir uma estratégia de redução de danos, não podemos perder de vista que defender que o sistema criminal possa ser antirracista é tão hipócrita quanto defender que um frigorífico ou um carnívoro possa estar preocupado com o bem-estar animal para além da qualidade da matéria-prima.

Matadouro foi feito para matar e pode até existir morte “menos sofrida”, mas ainda assim será morte.

REFERÊNCIAS:

DAVIS, Ângela. Estarão as prisões obsoletas? 4ª edição. Rio de Janeiro: Difel, 2019.

GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, pp. 223-244.

HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo. Tradução Bhuvi Libanio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

OLIVEIRA, João Pablo Trabuco.  O racismo ambiental no cárcere brasileiro: retratos do genocídio negro contemporâneo na Penitenciária Lemos Brito. 109f. 2020. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.

TRECENTI, Anelize de Souza; ZAPPA, Vanessa. Abate humanitário: revisão de literatura. In: Revista Científica Eletrônica de Medica Veterinária, Ano XI, Número 21, Julho de 2013, pp. 01-12.

Ana Luiza Nazário
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Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Mestranda em Direitos Fundamentais e Justiça (UFBA). Membro do Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal - NESP (CNPq/UFBA). Professora no Centro Universitário UniRuy. Advogada criminalista.

Fernanda Furtado Caldas
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Socióloga e advogada. Especialista em Política e Estratégia (UNEB). Mestranda em Direito Público (UFBA). Integrante do Núcleo de Estudos sobre Sanção Penal (NESP/UFBA).