
Editorial: De que lado você samba?
Tinha uma eleição no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma eleição [2]. A combalida democracia brasileira foi posta mais uma vez à prova. No Brasil de 2020, voto é também grito. Mais do que análises políticas, retóricas intelectuais e disputas de narrativas, a escuta é indispensável.
Representantes desconectados dos representados procuram entender os novos movimentos, mas seguem traçando estratégias de vitórias a partir da quimera de que uma política defensora de direitos humanos não angaria votos. A mão estendida, o resgate em meio ao obscurantismo e o pertencimento a um grupo social fazem emergir pseudo-novas lideranças conservadoras na base da população, ao tempo em que, no país mais transfóbico do mundo, há recorde de candidaturas de pessoas trans [3], assim como recorde de pessoas trans eleitas para Câmaras de Vereadores [4].
Concomitantemente, mulheres candidatas recebem mais de quarenta xingamentos por dia no Twitter durante campanha eleitoral, independentemente do espectro político em que se situe [5]. João Alberto, homem negro, pai de quatro filhos, é espancado até a morte por seguranças em unidade de supermercado enquanto o vice-presidente diz à população que não existe racismo neste mesmo país [6].
Por outro lado, as questões correntes são tratadas como instrumento de sobrevivência, especialmente a segurança pública. A periferia conflagrada em uma guerra diária busca amparo naqueles que de fato dialogam próximo à realidade. E quando se trata de violência, sabe-se que grande parte dela encontra-se sufocada nos territórios marginalizados, onde não há estado de direito, garantias fundamentais ou sequer direito à vida.
A súplica legítima por segurança é pautada pela repressão a qualquer justo. Os que aplaudem o justiçamento de hoje desconhecem que serão as vítimas de amanhã, olvidando que regras sociais são criação de grupos específicos que definem quem serão os outsiders [7]. O atual cenário autoritário do país apresenta o contexto propício aos discursos de ódio, a criação do inimigo, em que semelhantes passam a se ver como desiguais, sendo a segurança pretexto para intensificação do controle social dos mais vulneráveis, operado através das forças policiais do estado. Em contrapartida, parcela daqueles que deveriam resistir à política fascista se rende a representantes do aparelho repressivo para vender seus novos heróis que têm medidas de exceção como capa.
Como define Giorgio Agamben, o estado de exceção, pensado como dispositivo provisório para situações de perigo, tornou-se um instrumento normal de governo [8]. Sem diálogo com o cotidiano das periferias, representantes preferem o pragmatismo fácil do projeto de poder, deixando de lado o compromisso histórico com os mais vulneráveis. Os que antes eram acusados de manipulação das massas aderem à narrativa superficial da lavagem cerebral religiosa. A escolha de major ou delegado/a ao invés de sociólogo/a ou professor/a simboliza um caminho distante da luta por igualdade social, que segue comparando condutas policiais à figura do artilheiro em frente ao gol, transformando vidas em números frios que pouco comovem o senso comum [9]. Esquecem que a violência é apenas o sintoma e não a causa. A polícia que mais mata é também a que mais morre. Os corpos que tombam têm sempre o mesmo CEP e a mesma cor, enquanto os outros, alheios à violência cotidiana, lavam as mãos e seguem adiante sem olhar para os lados.
Salo de Carvalho, ao relacionar os princípios orientadores da ação-reflexão de um criminólogo crítico e o “êxito político”, na linha do que argumenta Lola Anyar de Castro, evoca o compromisso de defesa dos direitos humanos e, a este indissociável, postura antiautoritária e de negativa da seletividade do sistema penal, questionando se tais fatores dificultariam a real disputa pelo poder político [10].
Por isso, mais do que nunca, é preciso entender que, para além de vitórias e derrotas, há princípios inegociáveis. Darcy Ribeiro nos ensina que fracassos podem ser vitórias e que, por vezes, é melhor estar ao lado dos perdedores [11]. A construção de um futuro possível só existe no semeio do presente. No Brasil de 2020, colhemos o que deixamos de plantar no passado. É preciso retomar os olhos à origem, escutar os mais vulneráveis socialmente e dialogar. Não é possível uma transformação real para eles, mas, sim, com eles [12]. Acreditar no povo é condição prévia, considerá-los ignorantes é um doloroso equívoco.
REFERÊNCIAS
[1] SCIENCE, Chico. Samba do lado. Afrociberdelia (álbum), 1996.
[2] ANDRADE, Carlos Drummond de. No Meio do Caminho. Antologia Poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[3] RUPP, Isadora. País mais transfóbico do mundo, Brasil tem recorde de candidaturas de pessoas trans em 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-11-12/pais-mais-transfobico-do-mundo-brasil-tem-recorde-de-candidaturas-de-pessoas-trans-em-2020.html>. Acesso em 16 de nov. de 2020.
[4] Eleição tem recorde de pessoas trans eleitas para as câmaras de vereadores. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2020/11/18/eleicao-tem-recorde-de-pessoas-trans-eleitas-para-camaras-de-vereadores>. Acesso em 18 de nov. de 2020.
[5] SANTANA, Jamile. “Gorda”, “porca”, “burra”: candidatas recebem mais de 40 xingamentos por dia no Twitter durante campanha eleitoral. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/violencia-politica-genero-eleicoes/>. Acesso em 19 de nov. de 2020.
[6] MAZUI, Guilherme. ’No Brasil, não existe racismo’, diz Mourão sobre assassinato de homem negro em supermercado. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/20/mourao-lamenta-assassinato-de-homem-negro-em-mercado-mas-diz-que-no-brasil-nao-existe-racismo.ghtml>. Acesso em 21 de nov. de 2020.
[7] BECKER, Howard S. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 [1963], p. 27.
[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Rio de Janeiro: Boitempo, 2004. Tradução de Iraci Poletti.
[9] CARIBÉ, Pedro. Salvador 2020: uma eleição engana olho. Revista Afirmativa, 2020.
[10] ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminología y poder: aventuras y desventuras de um criminólogo critico en el ejercicio del control social. Capítulo Criminológico, v. 23, n. 02, 1995 Apud DE CARVALHO, Salo. O “gerencialismo gauche” e a crítica criminológica que não tem teme dizer seu nome. R. Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 15, n. 1, p. 125-155, jan./jun. 2014
[11] RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo: Global, 2016.
[12] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz&Terra, 2019.