
Editorial: Autoabsolvição – entre os “nossos” e o “outro”
Algumas coisas aprendemos com a experiência. Eu, você e todos nós sabemos que o céu é azul e que o sol nasce sempre no mesmo lugar. Sabemos que limão é azedo. Outras coisas tomamos como verdade porque fazem parte da narrativa que nos foi vendida como tal. Pode ser uma verdade religiosa, como acreditar em reencarnação, ou até mesmo uma verdade pessoal, como quando você ouve tantas vezes que é burra ou feia quando criança que acaba acreditando naquilo. Só cabe no nosso horizonte aquilo que achamos possível, seja porque se trata de algo que experienciamos, seja porque se trata de algo que fomos ensinados a acreditar. A questão é saber separar cada uma dessas categorias e não tomar nenhuma delas enquanto verdade inquestionável, afinal, pode ser que exista algum limão doce em outras terras, ou talvez você fosse uma criança inteligente com pais impacientes e talvez até cruéis.
Infelizmente parece que o ser humano médio passa muito pouco tempo divagando a respeito de suas crenças ou questionando a realidade ao seu redor, e é por essas e outras que é tão difícil fazer uma valoração probatória minimamente comprometida com a realidade. Sim, o assunto aqui é processo penal, não frutas ou traumas de infância. O grande mal dos julgadores talvez seja, quem diria, falta de imaginação para cogitar aquilo que desconhecem – e falta de vontade de mudar isso. Se sua realidade pessoal é o parâmetro de todas as coisas, sua compreensão do que é possível será bem limitada. É por isso que é tão fácil ter empatia quando julgamos nossos iguais – não é preciso um grande esforço de imaginação pra se colocar no lugar daqueles com quem nos identificamos. Some-se essa limitada percepção da realidade ao fato de que a narrativa na qual acreditamos é a de que nós somos os mocinhos da história. Logo, se alguém acusa o meu semelhante de ter errado, eu pensarei em várias justificativas possíveis pra aquele erro, ou considerarei seriamente que a acusação seja falsa. Mas quando o acusado é o “outro”, minha cognição já não vai tão longe.
Não é de se espantar, então, que seja tão fácil para um grupo de homens brancos duvidar de uma acusação de estupro quando o suposto algoz é também um homem branco. Ora, se eu leio homens brancos, converso com homens brancos, admiro homens brancos, considero os homens brancos como únicos possíveis produtores de qualquer conhecimento, como eu poderia conhecer outra realidade além da minha?
Minha chave interpretativa é o que eu conheço. Na hora de avaliar qual das hipóteses é a mais provável, a sustentada pela vítima ou a sustentada pelo réu, jamais poderei produzir uma decisão imparcial. Acharei totalmente possível que um estudante universitário preso com 3kg de maconha e uma balança de precisão seja meramente um usuário precavido, que prefere evitar ir à boca de fumo várias vezes, e que quer garantir que não está sendo enganado nas quantidades, ao mesmo tempo em que sustentarei que um jovem preto e favelado preso com 5 baseados, um celular e notas de 2 reais na carteira só pode ser um traficante – pois por qual outro motivo ele teria um celular e dinheiro trocado? Como ele seria capaz de juntar dinheiro pra comprar cinco baseados se não fosse traficando?
É por isso que ouvimos homens (e mulheres,
que vivem num mundo onde toda a narrativa da verdade é produzida por e para
homens) levantando a possibilidade de que uma mulher se submeteria voluntariamente
à humilhação e linchamento moral que acompanham a denúncia de uma violência
sexual sofrida para: a) ficar famosa; b) chamar atenção; c) angariar
seguidores; etc. Não conseguem imaginar o óbvio porque não querem conhecer o
óbvio. Ignoram os estudos que mostram que o percentual de acusações falsas
nesses casos é baixíssimo[1]. Ignoram a revitimização
imposta pelo nosso sistema de justiça. Ignoram a vergonha. Ignoram o medo.
Ignoram o que não querem conhecer – sobre os outros e sobre si mesmos. É assim
que chegamos a uma decisão judicial: o grau de suficiência das provas é diretamente
proporcional à vontade de absolver os próprios pecados.
REFERÊNCIA
[1] KELLY, Liz. (In)credible Words of Women: False Allegations in European Rape Research. In: Violence Against Women Vol. 16, Dezembro de 2010. pp. 1345-1355. Disponível em: https://www.ncjrs.gov/App/Publications/abstract.aspx?ID=255228. Ver também: OLIVEIRA, Caroline. Brasil não possui dados oficiais sobre falsas denúncias de estupro, mas culpabiliza vítimas. Disponível em: http://www.justificando.com/2019/06/07/brasil-nao-possui-dados-oficiais-sobre-falsas-denuncias-de-estupro-mas-culpabiliza-vitimas/.