Editorial: Através do espelho – notas sobre o reconhecimento de pessoas

O espelho é um só, mas há dois mundos. De um lado, a pessoa que se vê e sabe ter a cor da noite; do outro, a pessoa universal, a brancura não dita que lhe confere a dignidade de ser vítima [1]. Convida-se ao reconhecimento, mas é um jogo de carta marcada, no singular. Há só uma pessoa ali, perigosa demais para não ser apontada. A pressão é muita, as instruções são confusas e tudo depende de um mero dedo (im(p)une) em riste. Ele atravessa o vidro, destrói uma vida e cria a (pífia) verdade que a persecução criminal do dia a dia precisa.

O reconhecimento de pessoas é um procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, com redação inalterada desde 1941, ano da entrada em vigor dessas regras autoritário-escravistas do jogo de acusar alguém no Brasil. O procedimento normatizado talvez fizesse algum sentido quando se acreditava em mitos como da existência de “memória fotográfica” [2], mas os estudos sobre a “psicologia do testemunho” e publicações mais [3-4] ou menos [5] recentes dão conta de quão baixo é o valor epistêmico desse meio de prova, nos termos atuais.

As sutilezas da operacionalização do Direito Penal e os arranjos hegemônicos nas instituições de persecução penal mantiveram, por décadas, um pacto de mediocridade, responsável por inúmeros reconhecimentos injustos, porém suficientes para violentar as trajetórias de pessoas negras fagocitadas pelas agências policiais e sua performance racista. É a “trama da pele” [6], que gera vidas encarceradas, provisória e definitivamente, com base num ato pobre, não raro resumido a um catálogo de fotos arbitrariamente acervado.

Num país em que se pensa que “preto é tudo igual”, de Zezé Motta a Elisa Lucinda [7], de Luis Miranda a La Peña [8], a Sexta Turma do STJ deu uma guinada jurisprudencial sobre esse tema na semana passada, viabilizando novos rumos quanto ao reconhecimento de pessoas no processo penal e incentivando o abandono do status de “mera formalidade” do art. 226 do CPP [9]. Apesar disso, ainda há muito a se fazer no campo do direito probatório, ante a resistência a uma refundação do sistema processual penal.

O atual fazer e o porvir do procedimento de reconhecimento de pessoas devem ser escrutinados, com vistas a uma nova postura do sistema de justiça criminal, para que esse tardio avanço, fruto da pressão dos movimentos negros e de mulheres – aos quais se somam parcela da academia que tem enxergado além das paredes frias das universidades e iniciativas como as do Innocence Project e a Campanha “Justiça para os Inocentes” [10] -, não seja mais um dentre tantos assentamentos formais de ilegalidades existentes tão somente no mundo dos espelhos, simbólico e abstrato em relação ao domínio real.

REFERÊNCIAS

[1] Ana Luiza Pinheiro Flauzina e Felipe da Silva Freitas. Do paradoxal privilégio de ser vítima: terror de estado e negação do sofrimento negro no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais. N. 135. 2017.

[2] Janaína Matida, em intervenção oral. WebConferência Grupo Prerrogativas: Justiça para os Inocentes. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0UUr9RDwKDE

[3] Antônio Vieira. Riscos epistêmicos no reconhecimento de pessoas: contribuições a partir da neurociência e da psicologia do testemunho. Trincheira democrática – Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, Ano 2, nº 3. 2019.

[4] Leonardo Marcondes e William Cecconello. O necessário diálogo entre a psicologia e o direito processual penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-10/academia-policia-necessario-dialogo-entre-psicologia-direito-processual-penal

[5] Avanços científicos em Psicologia do Testemunho aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses. Coord: Lilian Stein. Série Pensando o Direito, nº 59  – Brasília: Ministério da Justiça; Ipea, 2015.

[6] Saulo Matos. Poema “Ocaso”, @margens negras, 14 de outubro de 2020. A propósito do errado reconhecimento fotográfico de um músico na cidade de Niterói/RJ. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGVjaq4HIRH/?igshid=9s3rscg6kuwn

[7] Elisa Lucinda, em “Diálogos Ausentes”. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w5UBFd0wZ94&t=235s

[8] Helio de La Pena dá puxão de orelha na Uol, que o confundiu com Luiz Miranda. Disponível em: https://mundonegro.inf.br/preto-e-tudo-igual-ne-helio-de-la-pena-da-puxao-de-orelha-na-uol-que-o-confundiu-com-luiz-miranda/

[9] Sexta Turma do STJ, em decisão no HC 598886. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/27102020-Sexta-Turma-rechaca-condenacao-baseada-em-reconhecimento-que-nao-seguiu-procedimento-legal.aspx

[10] Lançamento da “Campanha Justiça para os Inocentes”, com Caetano Veloso e André Nicollit. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CG0YiQZn68-/?utm_source=ig_web_copy_link

Jonata Wiliam
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Mestrando em Direito Público – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Advogado criminalista.

Vinicius Assumpção
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Advogado criminalista. Doutorando em Direito. Professor de Processo Penal.